Entrevista de Lula ao jornal El Pais
A entrevista que Lula concedeu ao
jornal El Pais no último dia 20 causou sensação. Por aqui foi
divulgada com manchetes como “Lula cobra desapego de petistas por
cargos públicos” (Valor) ou “Em entrevista a jornal espanhol,
Lula critica o PT” (Globo). Os jornalões não perdem mesmo a
chance de promover uma intriga. Confira a entrevista na integra, com
tradução do PT Senado.
El País - Vou dizer que eu não preparei
perguntas… Li páginas e páginas de sua vida e seus milagres e,
salvo algo que queria dizer para iniciar a conversa, não trago nada
a priori.
Lula - Nem eu preparei as respostas…
Começamos bem, então. Só uma coisa
dá voltas em minha cabeça. Tanta universidade de prestígio para
preparar líderes mundiais, tanto cérebro, muito estudo, para que
venha alguém como você, sem qualquer título, formado na dureza das
ruas e se convertendo num ícone mundial que quebra recordes.
Políticos devem entender um problema.
Nas últimas três décadas, mas principalmente mais tarde, depois de
um consenso entre Thatcher e Reagan, o mundo tornou-se governado por
uma lógica muito burocrática, técnica, menos política. A economia
começou a determinar a direção do governo, e não o inverso. Isso,
na minha opinião, é um grande erro. Um grande político será capaz
de montar uma boa equipe técnica. Mas se você é um bom técnico,
talvez você não seja capaz de tomar boas decisões políticas. Por quê? As universidades não formam
prefeitos, governadores ou presidentes de países. Essa experiência
se adquire na relação que você tem com as pessoas, com os grupos
políticos com os quais você está comprometido, com sua capacidade
de viver democraticamente na diversidade. Um técnico pode se sentar
em uma mesa e elaborar um documento extraordinário, mas para um
político, se ele não sabe comunicar esta proposta no momento certo
para as pessoas certas, e se não conversa com as pessoas envolvidas
na sua decisão, as coisas não se concretizam.
Em outras palavras, a política é uma
boa combinação de…
Bons políticos precisam de bons
técnicos. Tomemos o exemplo de Sebastián Piñera no Chile, um
grande empresário que está descobrindo que o exercício do governo,
lidar com opositores interesses diversos, é mais difícil tomar uma
decisão para sua empresa. Quando você é apresentado a uma crise
interna, você tende a buscar técnicos que a resolvam no lugar de
políticos. Por exemplo, na Europa, na minha opinião, enfrenta uma
situação que afeta o mundo inteiro por falta de decisão política,
não econômica. Antes, quando as crises afetavam a Bolívia, o
Brasil, o FMI sabia tudo. Por que agora não tem ideia de como
resolver a situação?
Isso. Por quê?
Porque é um problema político. As
decisões não foram tomadas na hora certa. No fundo se permitiu os
mesmos ajustes que são feitos em países pobres. Espanha e Grécia,
com suas rendas per capita, poderiam fazer ajustes de mais longo
prazo, e não em tão curto, asfixiando a economia, com base em
enormes sacrifícios e sem ter em conta o que vai custar às pessoas
para se recuperarem.
Técnicos, com a sua lógica de
negócios.
Os técnicos especialistas em salvar
bancos!
Então, aqui estamos, olhando para a
cena política. Porque essa arte deve unir sentido comum e paixão. É
o que está faltando a vários técnicos?
Até o momento já foram usados quase
10 bilhões de dólares para resolver o problema da crise. Não
conseguiram. Tampouco existem sinais claros no curto prazo. Com esse
dinheiro, quanto não se poderia fazer para elevar o padrão de vida
dos mais desfavorecidos. Na América Latina, na Europa, na África.
Creio que se a política tivesse prevalecido sobre os aspectos
técnicos e da burocracia, as pessoas sofreriam menos. No momento em
que o mundo precisava de mais comércio, diminui; quando precisávamos
de mais empregos, também caíram. E os banqueiros, até agora, ainda
não pagaram a conta.
Mas com líderes que temos na Europa…
Devo ser justo, eu sou um grande
defensor do que foi alcançado com a construção da Europa. Foi um
esforço coletivo histórico. Mas a verdade é que as organizações
que a dirigem são frágeis. Eu poderia citar uns quantos líderes
capazes de estar no comando da comissão.
Vamos falar sobre isso.
Não posso.
Para quem não preparou respostas,
alguém poderia pensar o contrário.
Não digo nomes porque é uma falta de
respeito por parte um ex-presidente de um país; poderia ser
considerado uma ingerência.
Um pouco de luz, de experiência, nada
de ingerência.
Quando o Barcelona quer ganhar do Real
Madrid quer, sabe que tem que usar sua força total, e vice-versa. Na
política, em tempos difíceis, você deve reunir todas as pessoas
relevantes para tomar decisões em comum: é preciso ouvir os
sindicatos, empresários, especialistas, acadêmicos, sociedade civil
e construir uma proposta que contemple a maioria dos representantes
do país. Mas se está pensando do ponto de vista estritamente
técnico. A impressão que tenho é que a chanceler Merkel assumiu um
superpapel na União Europeia e todos dependem dela, vão atrás,
quando são 28 países e Alemanha é quem determina seu
comportamento, seus ajustes. E agora que ela foi reeleita, qual
discurso faz?
Que tudo continue igual.
Trabalhar, controlar os gastos, ao
invés de buscar soluções comuns, no âmbito político. Quem sofre
na Espanha? Os banqueiros? Os grandes empresários? Não. Os jovens
com expectativas de encontrar emprego, estes sim. Com isso, não
quero dizer que eu tenho a solução para tudo, mas simplesmente que,
sem discutir politicamente o problema, é mais complicado encontrar a
saída. Muito mais difícil. Mais ainda num mundo que em que a
economia está globalizada e as decisões políticas são tomadas em
nível nacional. Precisamos de instituições multilaterais fortes
para ajudar a cumprir as medidas. Não como o FMI, que vinha aqui
todos os meses e nos dizia o que fazer. Até que a Europa não lhes
prestasse atenção, não nos demos conta que não tinham importavam.
Eu o vejo em forma… Mas para quê?
Aonde você quer chegar?
Quando uma pessoa completa 60 anos, e
eu estou com 68, nossas expectativas futuras são menores. Quando eu
tinha 18 anos, o mundo e a vida eram infinitos. Hoje, não. O tempo
que me resta é muito mais curto do que aquele deixado para trás,
mas não penso nisso o dia todo. Eu me cuido mais do que eu me
cuidava.
Talvez a quantidade de tempo seja
menor, mas você não desejaria que a qualidade fosse maior? Depois
de derrotar a doença, o câncer, eu o vejo querendo voltar para a
linha de frente.
Não, não, não. Só tenho vontade de
sobreviver. Há algum tempo me operaram de um câncer e graças a
Deus me recuperei e tenho trabalhado muito, eu diria que mais do que
quando era presidente. (…) O que eu quero fazer realmente é
tentar, através do meu instituto, é contribuir para o
desenvolvimento na América Latina, na África, com experiências de
sucesso que temos alcançado no Brasil, porque sim, é possível
cuidar dos pobres, e eles não custam muito dinheiro. Se você lhes
dá acesso a recursos, eles se tornam consumidores e aí a indústria
produz, o comércio vende, se cria emprego, mais salários, e assim
se forma um círculo virtuoso em que se produz, se consome, se
estuda, existe acesso à cultura …
Um círculo virtuoso com o qual os
jovens no Brasil não parecem satisfeitos. Daí os protestos?
Isso é importante. E damos muito
valor. Estes protestos são saudáveis. Um povo com fome não tem
vontade de lutar. Quando 40 milhões de pessoas passaram para a
classe média, quando em 2007 havia 48 milhões de pessoas que podiam
viajar de avião e em 2013 esse número subiu para 103 milhões, um
país que produziu 1,5 milhões de carros e agora chega a 3,8
milhões…
Muitos, se olharmos para os
engarrafamentos de trânsito aqui em São Paulo. Mais Metrô e menos
carros não seria mal.
Um país que era a décima maior
economia do mundo.
Vê como tem preparadas as respostas…?
Deixe-me concluir o raciocínio… E
que em 2016 será a quinta maior economia do mundo, produziu uma
sociedade que quer mais, é normal. A sociedade descobriu que é
possível querer mais. Conseguimos em 10 anos passar de 3 milhões de
graduados universitários para 7 milhões. Em 10 anos, conseguimos
mais do que havíamos conseguidos em todo século 20, e isso desperta
na sociedade o fato de querer mais. Temos que louvar a participação
democrática e não permitir que os jovens reneguem a política,
porque quando isso acontece, o que vem é o fascismo. Queremos que os
jovens discutam abertamente para que sintam que fora dela não há
outro caminho.
Tenha cuidado com tanto universitário,
vão aparecer técnicos demais.
Precisamos de bons profissionais…
Isso sim. O que está claro é que
Dilma Rousseff entendeu bem o grito das ruas, tem se mostrado
sensível, mas você também tem sido crítico de certas atitudes de
seu próprio partido. Não estão sabendo digerir a situação?
O Partido dos Trabalhadores completou
33 anos de vida. Quando se chega a isso, quem começou aos 35 anos
deve dar vez a uma nova geração. Este é um partido que foi criado
pelos trabalhadores e dirigido por eles, e se tornou o mais
importante na esquerda da América Latina.
Você disse hoje “esquerda”, mas em
alguns momentos deu a entender que não é.
Você me faz outra pergunta quando não
terminei a resposta anterior… Eu digo que o PT é o mais importante
da esquerda latino-americana.
Mas não uma esquerda clássica?
Nós o estamos construindo com a nossa
própria experiência. O que eu digo é que era um pequeno partido
que mais tarde se tornou grande, e como tal, foram aparecendo
defeitos. Gente que valoriza muito Parlamento; outros, os cargos
públicos…
Com um grande processo de corrupção
no meio.
Também, mas quando esse acabar
entramos em outro. Queria dizer que as pessoas tendem a esquecer os
tempos difíceis em que achávamos bonito carregar pedras.
Acreditávamos, era maravilhoso. Um grupo mais ideológico, a gente
trabalhava de graça, de manhã, de tarde, de noite. Agora você faz
uma campanha e todo mundo quer cobrar. Não quero voltar às origens,
mas gostaria que não nos esquecêssemos de para quê fomos criados.
Por que queríamos chegar ao governo? Não para fazer igual aos
outros, mas para agir de forma diferente.
E para que valha a frase que você
repete insistentemente e pela qual o criticam tanto: “Nunca antes
na história do Brasil…”. Mas você dizia que, no processo de
crescimento…
A corrupção aparece.
Os partidos são como os seres vivos?
Vão se deteriorando?
O que eu digo aos companheiros é que
só há uma maneira de não ser investigado neste país: não cometer
erros. Duvido que exista no mundo um país com o número de
auditorias que o Brasil tem. Noventa por cento das denúncias que
aparecem são feitas pelo próprio governo. Nós contratamos
policiais, reforçamos os serviços secretos, fortalecemos o controle
das contas públicas… Quanto mais transparência, melhor. O que não
se pode admitir é que, depois que uma pessoa passa por um processo e
não se descobre nada, não se peça desculpas. Por isso que eu me
preocupo com essas condenações a priori. No caso dos companheiros
do PT, já foram previamente condenados. Alguns meios de comunicação
fizeram isso, independentemente do julgamento, incluindo prisão
perpétua. Alguns nem podem sair na rua. Eu insisto: temos de ser
150% corretos, porque se estamos errados em 1%, aos olhos dos nossos
adversários e alguns meios de comunicação, elevarão a uns 1,000%.
Às vezes me queixo, mas acho bom que nos controlem. Muitas vezes nos
criticam pelo que temos de bom. Como uma árvore, se separa a que não
dá bons frutos.
Esta sua tolerância com os meios de
comunicação que o atacam não poderia ser transferida a colegas
seus da esquerda latino-americana que preferem fechá-los? Correa no
Equador, Maduro na Venezuela, Cristina Fernández na Argentina…
Eu sou um democrata. Defendo a
liberdade de imprensa. Sou o resultado disso. Nunca a imprensa
brasileira falou bem de mim, mas nunca me importei. Nunca pedi
favores, nem peço. Quem julga a imprensa são os leitores, o
público. Mas em alguns países latino-americanos devemos adaptar as
leis aos tempos que vivemos. No Brasil, existem nove famílias que
controlam os meios de comunicação, o que mudou um pouco esse
panorama foi a Internet. Não se trata de entrar em conteúdos,
obviamente, mas sim democratizar, ampliar o acesso.
Você vai se candidatar em 2014?
Não. Eu tenho minha candidata, que é
Dilma, e eu vou trabalhar para ela.
Imagine-se voltando e o panorama que se
encontra agora. O que mudou na América Latina nas últimas décadas!
Até que a Teologia da Libertação entrou no Vaticano de mãos com o
papa Francisco. Que coisa!
Ninguém imaginava que na América
Latina se produziriam tantas mudanças em tão pouco tempo. Mas isso
aumenta a nossa responsabilidade. Quanto mais importante você é,
mais obrigações deve assumir.
Verdade.
Voltando à Europa. Qualquer líder que
está na oposição sabe as mudanças que devem ser aplicadas ao
chegar ao cargo. Hollande, por exemplo, sabia durante a campanha.
Mas parece ter esquecido em alguns
aspectos.
Tive uma conversa extraordinária com
ele. Eu sou um amigo dele de antes. E lhe disse: você não pode
esquecer o seu discurso ao se tornar presidente. Pegue suas
propostas, marque-as, coloque-as na cabeceira da cama e não se
esqueça nunca de por que te elegeram. A Obama comentei: você tem
que limitar-se a mostrar a mesma coragem que mostrou o povo americano
ao te eleger presidente.
Alguns podem pensar que tal conselho
seriam bem vindos a você quando se tornou presidente e teve uma
crise de pragmatismo.
Não, não, não. Tenho sido um
político humilde. No meu discurso de posse eu formulei três coisas
que mantive em todo meu mandato: primeira, fazer o necessário;
depois, o possível; e, por último, quando menos esperamos,
estaremos fazendo o impossível. Se ao final consegui que os
brasileiros se levantassem e tomassem café, almoçassem e jantassem,
cumpri a missão da minha vida.
A utopia possível? Sem nenhum
problema?
Fizemos mais do que isso, ao definir o
que queríamos.
Vejo o sonho de uma criança comendo
pão pela primeira vez quando tinha sete anos. Isso me contaram.
Foi sim.
Como era essa criança?
Uma criança que foi criada por uma mãe
que nasceu e morreu sem saber escrever a letra O.
Mas que suponho saber muitas outras
coisas.
Como criar oito filhos ensinando-nos a
ser perseverantes e a não se queixarem muito, mas sim que poderíamos
conseguir cada vez mais. Quando as pessoas estão determinadas a
fazer algo, elas fazem. O problema é que é mais fácil se acomodar.
Na liturgia de um cargo, por exemplo, você se acomoda. Você se mata
para ganhar uma eleição e entra em cerimonial que nem te ouve,
cercado por uma equipe de segurança que informa quando, onde e que
horas deve ir aos lugares. Pessoas nem sequer votaram em você…
Cada gesto é determinado pela lógica da liturgia. Se você entrar
nessa, não fará prometeu em campanha.
Como, por exemplo, colocar smoking no
Palácio Real de Madrid?
Estava indo para uma recepção diante
do Rei e me disseram que tinha de ir vestido assim, mas eu disse que
me apresentaria com minha roupa normal porque eu não usava isso. Da
mesma maneira, não se pode pedir a um líder africano que vista
gravata ou ao rei Juan Carlos que colocou um turbante. Ele gostou,
sempre me tratou muito bem. (…) Parece que tudo está escrito. Sei
que às vezes essas regras são necessárias, mas não tanto. Marca
uma estrutura de poder que sobrevive graças a isso.
Jamais se acostumou?
Não, e havia muitas pessoas que se
aborrecia comigo porque eu não cumpria muitas coisas, mas eu me
portava bem. Não saía para jantar, não passeava em museus para que
a imprensa não dissesse que eu estava fazendo turismo… Valeu a
pena.
O homem, um museu nunca é demais.
Sim, mas a imprensa diria de tudo.
Salvo o protocolo, existe algo do cargo
que sinta falta?
Sou um homem de muitos relacionamentos.
Gosto de política e eu gosto de pessoas. Manter boas relações com
os governantes, tento estabelecer intimidade para quebrar essa
distância, sempre fui de dar abraços, tenho saudades das amizades
que fiz naqueles dias. Eu continuo viajando muito, falando mais…
Mas pouco mais.
O que acontece? Há presidentes que não
param de interferir em tudo.
Teria de perguntar a Dilma. Eu tomei a
decisão de me afastar, viajei muito, depois veio a doença. Agora
estou de volta, evito dar entrevistas, mas me sinto bem. Me orgulho
de tudo que fiz na vida. Cumpri algo sonhava fazer. Muitas pessoas
duvidaram que eu seria capaz de governar sem um diploma
universitário, mas respondia que eu queria fazer para provar que ele
era capaz de realizar muito mais do que eles.
Para a vida, estava preparado, e,
portanto, para a política real, muito mais.
Sim, mas havia muitos preconceitos
porque eu não falava Inglês ou Espanhol e, no entanto, o Brasil
nunca teve uma política externa como na nossa época.
E sem bomba atômica. Embora você
quisesse fortalecer seu país militarmente. Por quê?
Não, nem tanto, o que acontece é que
o Brasil deve ter forças armadas dignas de sua grandeza. Devemos
proteger nossos campos de petróleo, nossa floresta, nosso fronteira
oceânica e terrestre. Se formou um conselho de defesa para promover
uma unidade militar como existe na política. Mas sem armas
nucleares. A nossa Constituição proíbe a proliferação de armas
nucleares. Não foi o Lula, é a Constituição. Somos pacifistas.
Nós gostamos de política, samba, carnaval, mas não de bomba
atômica.