Foto: EL Nacional |
Na foto ao lado, "maré roja" acompanha o enterro do ex-presiente.
Chávez catalisou reação latina contra os EUA
Uma rápida retrospectiva dos anos em que Chávez foi uma peça de destaque no tabuleiro latino-americano mostra o efeito catalisador desta presença.
Não se pode negar o sentido de beira de precipício e alto risco que a polarização ideológica impõe a qualquer cenário, seja nacional, regional ou global. No caso do chavismo na Venezuela, este foi um instrumento crucial de coesão interna que – num marco político-institucional próprio – replicou experiências como a de Cuba com Fidel ou da Argentina com Perón.
Um olhar menos preocupado em personalizar o relato histórico, que procura compreender os processos de mudança, verá que, para a América Latina – e, especialmente a América do Sul --, este foi o momento de esgotamento da condição de inserção internacional como esfera de influência dos Estados Unidos.
Também se verá que o governo de Bush filho contribuiu com igual ou maior estridência que o presidente da Venezuela para esticar um cordão umbilical que, ao final, se rompeu, permitindo que se virasse uma página aberta desde os anos 40 do século passado.
Este foi um avanço histórico, impulsado pela sinergia política espontaneamente produzida entre visões de mundo defendidas pela Venezuela, pela Argentina e pelo Brasil. Enquanto Chávez vociferava contra os EUA em diferentes palanques, a Argentina oferecia o cenário mais expressivo da debacle do neoliberalismo e o governo Lula implodia a negociação da Alca – o último suspiro da noite de verão dos termos assimétricos que condicionaram por décadas o vínculo EUA-América Latina.
A partir de então uma dobradinha não declarada entre Venezuela e Brasil permitiu que fossem dados passos largos para a condução de um projeto sul-americano próprio, com expressão política e institucional, que atualmente se configura como a Unasul (União de Nações Sul-Americanas).
Não foram de todo superadas as diferenças entre os governos da região, mas passou a prevalecer o primado da convivência pacífica e, pouco a pouco, ganhou corpo a coordenação em temas essenciais como a defesa, o combate ao narcotráfico, a governança global e a cooperação para o desenvolvimento.
Também se caminhou na reconfiguração de um tabuleiro único latino americano-caribenho com a criação da Celac, que alavancou o retorno de Cuba ao multilateralismo regional. Mais uma vez, Caracas e Brasília trabalharam numa mesma direção.
SUL-SUL
A Venezuela de Chávez tornou-se também um dos principais motores da expansão da Cooperação Sul-Sul regional. Além das parcerias estimuladas por via da Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América), desde 2004, o governo venezuelano espalhou sua assistência petroleira pelo Caribe e América Central.
Deve-se sublinhar aqui a ajuda oferecida ao Haiti nos últimos oito anos através de generosas doações de petróleo. A Venezuela, da mesma forma que Cuba, sempre criticou a Minustah – tropa da ONU comandada militarmente pelo Brasil –, percebida como um novo episódio de intervenção externa imposta ao pobre país caribenho. Esta posição, entretanto, não impede que venezuelanos, cubanos, brasileiros e muitos outros tenham se somado num “pool” solidário para a reconstrução haitiana.
A atuação de Chávez foi ainda um fator favorável para avançar em direção da paz colombiana. O canal de comunicação mantido com as Farc constituiu um elemento facilitador crucial para que a Colômbia pudesse arquitetar uma mesa de diálogo entre as partes em conflito. O recente agradecimento público do presidente Juan Manuel Santos deixa registrado este reconhecimento.
Em resumo, com estridência e dramatismo próprios da cultura venezuelana, Hugo Chávez já deixou uma marca na história recente latino americana.
Trata-se de uma figura que somou altivez e audácia ao momento de recuperação da soberania política da América do Sul. Um momento em que o continente consolida seus marcos institucionais democráticos que, se bem diversos, compartilham o compromisso com políticas de inclusão social e a valorização da paz regional.
MONICA HIRST é professora da Universidade Nacional de Quilmes e bolsista do Ipea